segunda-feira, 4 de setembro de 2017

FDA APROVA PRIMEIRA TERAPIA GENÉTICA CONTRA O CÂNCER NOS EUA

Agência reguladora americana dá sinal verde para tratamento que usa células alteradas do próprio paciente e é última esperança para casos incuráveis
RIO – A Administração de Alimentos e Drogas dos EUA (FDA, na sigla em inglês) deu o sinal verde nesta quarta-feira para a comercialização da primeira terapia genética contra o câncer no país. Com o nome comercial de Kymriah (tisagenlecleucel), o tratamento usa uma técnica chamada CAR-T (sigla, também em inglês, para “receptor de antígeno quimérico de células T”) para introduzir um anticorpo em células de defesa do organismo do próprio paciente, as mencionadas células T de seu acrônimo, para que reconheçam, e ataquem, as células cancerosas.
– Estamos entrando numa nova fronteira na inovação médica com a capacidade de reprogramar as células do próprio paciente para atacar cânceres mortais – destacou Scott Gottlieb, comissário (chefe) da FDA. – Novas tecnologias como terapias genéticas e celulares têm o potencial de transformar a medicina, criando um ponto de inflexão na nossa capacidade de tratar e mesmo curar muitas doenças intratáveis. Na FDA, estamos comprometidos em ajudar a acelerar o desenvolvimento e revisão destes tratamentos inovadores que têm o potencial de salvar vidas.
O Kymriah e outras terapias que usam a mesma técnica são vistos como última esperança para vítimas de cânceres até agora incuráveis. São casos como o da menina americana Emily Whitehead, que em 2012, aos seis anos, estava à beira da morte, sofrendo com um tipo de câncer particularmente agressivo, conhecido como leucemia linfoblástica aguda (LLA) recorrente/refratária das células B (outro tipo de célula do sistema imunológico que tem em sua superfície uma proteína chamada CD19, alvo da alteração com a técnica CAR-T).
Tratada com as células T modificadas, Emily, hoje com 12 anos, está livre da doença, assim como 52 outros pacientes que participaram de ensaios clínicos da terapia. O sucesso dos testes levou um painel de dez especialistas, no mês passado, a recomendar por unanimidade à FDA a aprovação do tratamento. Diante disso, a agência reguladora decidiu liberar o uso do Kymriah em pessoas com até 25 anos que estejam sofrendo com a versão refratária da LLA ou no segundo ou mais episódio de recidiva, isto é, volta da doença.
– Como uma terapia imunocelular inovadora para crianças e jovens adultos que precisam desesperadamente novas opções, o Kymriah verdadeiramente incorpora nossa missão de descobrir novas maneiras de melhorar os resultados para os pacientes e a maneira como o câncer é tratado – comemorou Bruno Strigini, presidente do ramo de oncologia da Novartis, gigante farmacêutica suíça que participou do desenvolvimento da terapia, originalmente criada por pesquisadores do Hospital Infantil da Filadélfia.Mas apesar de seu caráter “milagroso”, a nova terapia deverá continuar a ser encarada como último recurso, já que seus efeitos colaterais podem ser muito severos, incluindo uma condição conhecida como síndrome de liberação de citocinas (CRS, ainda na sigla em inglês), uma resposta sistêmica à ativação e proliferação das células CAR-T que provoca febre alta e outros sintomas parecidos com os de uma gripe, e problemas neurológicos, ambos com potencial de matar o paciente.
Tanto que, para a administração do Kymriah, a FDA determinou a adoção de uma estratégia de avaliação e mitigação de riscos para seu uso seguro. Este protocolo inclui desde o treinamento dos profissionais de saúde no reconhecimento e gestão da CRS à ampliação da indicação da droga Actemra (tocilizumab) para tratar a síndrome induzida pela terapia genética em pacientes com mais de dois anos de idade, condicionando o uso do Kymriah à disponibilidade imediata da droga contra a CRS no hospital ou clínica onde o tratamento for feito.
Tampouco a nova terapia será barata. Segundo Strigini, o tratamento deverá ter um custo inicial de US$ 475 mil (cerca de R$ 1,5 milhão) por paciente, o que coloca o Kymriah entre as drogas mais caras de todos os tempos.
Oncologista do Instituto Vencer o Câncer, Fernando Maluf destaca que embora a técnica CAR-T já estivesse sendo estudada há anos na luta contra o câncer, a aprovação do Kymriah mostra que a estratégia está “no caminho certo”, dando aval para o conceito não só no tratamento da leucemia como de tumores sólidos, como em outras pesquisas e ensaios clínicos que estão testando o método no ataque a outros cânceres particularmente agressivos, difíceis de tratar e com prognósticos muito ruins, como no cérebro e pâncreas. Tudo conjugado aos chamados diagnósticos genéticos do câncer, já disponíveis e cada vez mais usados, em que é feito o sequenciamento das células doentes em busca de mutações que indicam qual tratamento, seja um quimioterápico “tradicional”, seja os também novos imunoterápicos e “drogas-alvo”, será mais eficaz naquele caso.
– Não tenho dúvidas de que vamos caminhar para a criação de outras terapias do tipo para serem usadas em outras situações – diz. – O futuro da medicina está nesta personalização, e não mais tratar todo mundo com o mesmo remédio para ver o que acontece. E é um futuro que não está muito distante. Nos próximos três a cinco anos devemos ter painéis com marcadores genéticos específicos do paciente para guiar estes tratamentos, seja na escolha dos quimioterápicos, imunoterápicos ou drogas-alvo ou na fabricação de terapias CAR-T específicas para aquele paciente.
Assim, por trás de todo este processo, está um conhecimento cada vez maior da biologia e da fisiologia do câncer e a noção de que ele não é apenas uma doença, mas um conjunto de condições que afetam cada paciente de maneira diferente, exigindo uma abordagem personalizada, reforça a médica Juliane Musacchio, integrante da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.
– Estamos vendo a chegada no mercado da primeira terapia 100% individual contra o câncer, o que abre uma nova era na oncologia – resume. – Já tínhamos os diagnósticos genéticos que mostram as mutações de um tumor para indicar qual tratamento é mais eficaz contra ele, mas são medicamentos produzidos em série, que valem para todos os pacientes cujos cânceres têm estas mutações. Mas neste caso temos algo extremamente específico, uma terapia que só vale para aquele paciente.
E assim como tem acontecido com os diagnósticos genéticos, a expectativa é de que, com o tempo e ampliação das indicações, as terapias do tipo CAR-T se tornem mais acessíveis.
– Mas é um caminho sem volta – considera a geneticista Ana Beatriz Alvarez Perez, responsável técnica do laboratório especializado em diagnósticos genéticos NIMGenetics. – Geralmente uma nova tecnologia, quando chega ao mercado, tem um custo mais alto, e não só na medicina, mas a tendência é de quanto mais ela for usada, mais barata fica. É uma questão de tempo um acesso maior da população a estas inovações.

Fonte: O Globo/Fundação do Câncer.